Bienal de São Paulo

Jacopo Crivelli Visconti

In frondem crines, in ramos bracchia crescunt;
pes modo tam velox pigris radicibus haeret,
ora cacumen habet: remanet nitor unus in illa.
[1]
Ovídio, Metamorfoses, I, 550 ss.

Quando criança, Walmor Corrêa passava as tardes a observar os animais que viviam no bosque defronte de sua casa. Na sua imaginação, a toca do tatu e o ninho do passarinho uniam-se em algum lugar, nas entranhas da terra ou da árvore, e o passarinho, passando da toca ao ninho, se transformava em tatu para sair andando. Outros caminhos escondidos levavam até o mar, e o tatu e o passarinho podiam transformar-se, a seu bel-prazer, em golfinho, caranguejo, gaivota…

As mutações das quais nascem os animais que povoam o bestiário em que o artista trabalha pacientemente há alguns anos descendem diretamente daquelas fantasias infantis, mas baseiam-se num estudo prolongado e numa precisão quase científica. Cada um dos animais criados por Correa é hipoteticamente possível, o artista mostra a mutação de cada membro, cada órgão, cada minúsculo ossinho ou cartilagem. A transformação não é apenas sugerida, é estudada durante muito tempo antes de ser “concretizada” sobre a tela; é, justamente, científica antes de ser poética. Assim como na metamorfose de Dafne em loureiro, narrada por Ovídio, nenhum detalhe é desprezado, a minúcia da descrição tranqüiliza o leitor e o ajuda a aceitar o milagre como autêntico.

A sobreposição de ciência e arte, principalmente no que se refere à descrição de plantas e animais, tem uma tradição cuja origem, no Brasil, remonta aos tempos das expedições científicas organizadas pelos reinos europeus para satisfazer sua curiosidade e sua sede de saber (e de riquezas). O papel dos artistas que participavam daquelas expedições não diferia muito do papel dos cientistas: a tarefa de ambos era observar, estudar e reproduzir. Em muitos casos, porém, a fidelidade da reprodução era prejudicada por algum vôo da fantasia. Aparentemente inserido nessa tradição, Walmor Correa na realidade opera uma inversão fundamental: em vez de inserir detalhes fantásticos numa representação substancialmente fiel da realidade, convida a um mundo inteiramente imaginário, que só tem em comum com o nosso a inflexibilidade das regras anatômicas.

[1] Os cabelos em folhas, os braços em ramos se alongam; O pé, tão veloz, em preguiçosas raízes depressa se imobiliza; a cabeça é tomada pela copa: nela, o mesmo brilho permanece. [N. da T.]

Bienal de São Paulo

Jacopo Crivelli Visconti

Her hair became leaves, her arms branches;
her once swift feet were stuck in stiff roots,
her face disappeared into the canopy:
only her shining beauty remained.
OVID, Metamorphoses, I, 550.

As a child, Walmor Correa would spend his afternoons watching the animals in the woods in front of his house. In his imagination, the mole’s burrow and the bird’s nest joined together somewhere in the bowels of the earth or the heart of the tree, and the bird, going from one to the other, transformed itself into a mole so it could go out and walk around. Other hidden paths led to the sea, and the mole and the bird could choose to become a dolphin, a crab, or a seagull…

The animals that inhabit his patiently produced bestiary, on which the artist has been working for some years, are direct descendents of the mutations of that childhood daydream, but based on painstaking research and an almost scientific precision. Each of the animals Correa creates is in principle capable of existing. The artist shows us the mutation of each limb, each organ, each tiny bone or cartilage. The transformation is exhaustively studied before being brought to life on the canvas; before being poetic, it is scientific. Like the metamorphosis of Daphne into a laurel tree narrated by Ovid, no detail is neglected; the reassuringly meticulous description helps the reader accept the miracle as authentic.

The superimposition of science and art, especially involving the description of plants and animals, has a tradition in Brazil dating from the scientific expeditions organized by European powers to satisfy their own curiosity and thirst of knowledge ( and wealth). In them, the role of the artists wasn’t much different from that of the scientist: both had to observe study and reproduce. In many cases, the accuracy of the reproduction was tainted by tinges of fantasy. Apparently a part of this tradition, Walmor Correa actually brings in a fundamental reversal: instead of including fantastic details in a representation that is substantially close to reality, he invites us into an entirely imaginary world, whose sole commonality with our world is the inflexibility of anatomic rules.