Quero-quero

Walmor Corrêa

Protagonista de lendas e versos, o Quero-quero (Vanellus chilensis) é encontrado em grande parte da América do Sul, sendo aclamado como “sentinela dos campos", devido ao seu comportamento protetor e vigilante. Territorial, ele faz os ninhos não nas copas das árvores, mas no solo, em regiões de banhados e pastagens, e põe-se a zelar pelos ovos e filhotes, anunciando, com seu grito agudo e incessante, a presença de intrusos e predadores, num alerta também para outras espécies. Sua postura é tão diferenciada e altiva, que o escritor e diplomata Rui Barbosa (1849-1923) dedicou um famoso discurso ao “pássaro curioso, a que a natureza concedeu o penacho da garça real, o voo do corvo e a laringe do gato”, e no qual se “descobriu a fidelíssima onomatopeia que o batiza”.

De fato, o nome pelo qual a ave é chamada no Brasil, deriva do seu canto alto e constante, de vocalização “tero-tero”, que o uso popular vincula, por proximidade fonética, a “quero-quero”. A onomatopoese ganha especial sentido na língua portuguesa, e só nela, devido ao seu caráter afirmativo e profundamente individual, associado ao “eu", que repete e reforça um “querer", um desejo: eu quero; eu quero-quero; eu quero muito.

Foi a partir desse jogo linguistico e pensando no diligente Quero-quero, pássaro tão profundamente característico do meu país, que desenvolvi o conjunto de pequenas pinturas, explorando a forma do animal contra um fundo branco, imaculado. Ele ora é representado em elegante e altaneiro voo; ora como se estivesse durante a postura dos ovos, sobre o ninho; ora com uma das patas erguidas, olhar arguto e atento, a observar e guardar o entorno. O elemento de subversão está, como em vários dos meus trabalhos, na representação do bico. Na natureza, o pássaro de pequeno porte tem um bico levemente longo e fino, indicando o aspecto generalista de sua alimentação, que vai de insetos a pequenos vertebrados e peixes. Na minha fantasia, os bicos despontam proeminentes e espraiados, sugerindo, de forma inequívoca, a ponta metálica de um saca-rolhas. O pássaro indica e eu quero: quero vinho. Quero-quero.

Desdobrando ludicamente aspectos da minha obra, essas imagens são atravessadas tanto pelas minhas pesquisas continuadas em torno da rica e exuberante fauna brasileira, como pelo meu interesse acerca do modo e da forma como nomeamos os seres vivos, os animais e as plantas. Tais aspectos me acompanham desde sempre, na articulação entre ciência e ficção, observação e fantasia, rigor e invenção. São, por assim dizer, meu instrumental poético, meu eixo e fonte para deambulações.

Quero-quero

Walmor Corrêa

Protagonist of legends and verses, the Southern Lapwing (Vanillas chilensis) is found in a large part of South America, being hailed as “sentinel of the fields", due to its protective and vigilant behavior. Territorial, it makes its nests not in the treetops, but on the ground, in areas of marshes and pastures, and takes care of the eggs and chicks, announcing, with its sharp and incessant call, the presence of intruders and predators, an alert for other species as well.  Its posture is so distinguished and haughty that the writer and diplomat Roy Barbosa (1849-1923) dedicated a famous speech to “the curious bird, to which nature has bestowed the plume of the royal heron, the flight of the crow and the larynx of the cat”, and in which “the most faithful onomatopoeia that baptizes it was discovered”. 

In fact, the name by which the bird is called in Brazil derives from its loud and constant song, from the vocalization “tero-tero”, which popular usage links, by phonetic proximity, to “Quero-quero” (I want-I want). Onomatopoese gains special meaning in Portuguese, and only in Portuguese, due to its affirmative and deeply individual character, which repeats and reinforces a desire: I want it; I want-I want it; I really want it.

It was from this linguistic game and thinking about the diligent Lapwing, a bird so profoundly characteristic of my country, that I developed a set of small paintings, exploring the shape of the animal against a white, immaculate background. It is sometimes represented in elegant and lofty flight; now as if it were during egg laying, over the nest; now with one of its paws raised, a sharp and attentive gaze, observing and guarding its surroundings. The element of subversion is, as in several of my works, in the representation of the beak. In nature, the small bird has a slightly long and thin beak, indicating the generalist aspect of its diet, which ranges from insects to small vertebrates and fish. In my fantasy, the spouts emerge prominently and spirally, unmistakably suggesting the metallic tip of a corkscrew. The bird indicates and I want it: I want wine. I want-I want it.

Playfully unfolding aspects of my work, these images are crossed both by my continued research around the rich and exuberant Brazilian fauna, and by my interest in the way we name animals and plants. Such aspects have always accompanied me, in the articulation between science and fiction, observation and fantasy, rigor and invention. They are, so to speal, my poetic instruments, my axis and source for divagation.