Etnografia cultural da flora mágica brasileira
Walmor Corrêa
Chega-te a mim, Agarradinho, Chora aos meus pés, Pega e não me larga, Busca longe, Carrapatinho, Faz querer quem não me quer, Chama e abre caminho, Laço do amor, Corre atrás de mim... Comercializados no Mercado Público Ver-o-Peso, em Belém do Pará, esses desejos engarrafados prometem atrair, conquistar e amarrar casais. Aliás, não há problema sem solução em meio às várias barracas especializadas: de queda de cabelo a frieira, passando por alergia e impotência, feitiço e infortúnio nos negócios. As ervas têm respostas para tudo.
Foi no Ver-o-Peso que iniciei, em 2018, o trabalho de campo que pauta o projeto Etnografia cultural da flora mágica brasileira, que venho produzindo desde então, em paralelo a outros trabalhos. Naquele momento, como um modo de acercamento vívido do meu tema, entrevistei e dialoguei longamente com diversas “erveiras”, mulheres que mantêm tradições familiares centenárias e que vendem as plantas no mercado, explicando seus usos em chás, unguentos, perfumes e banhos. Fascinado pela profusão de informações, não apenas adquiri algumas espécies, como procurei suporte científico junto à Embrapa de Belém, confirmando o que a sabedoria das ruas atesta: muitas dessas ervas têm, sim, poderosas substâncias químicas com efeitos farmacológicos, que estão na origem dos nomes pelos quais elas são conhecidas vulgarmente.
As denominações populares nascem, em grande medida, da observação e da comparação com o que se conhece, ou a partir da associação com lendas do folclore nacional. É assim que diversas plantas do gênero Sansevieria são relacionadas ao amparo e à segurança, pela similitude com artefatos de luta, tal como a “Espada-de-são-jorge” e o “Punhal-de-santa-bárbara”, que garantiriam proteção contra energias negativas e mau- olhado; é assim que a flor da bananeira, roxa, pendular, grandiosa e em forma de cone, é chamada de “coração da bananeira”; é assim que a “Tambatajá”, com sua folha triangular que traz, no verso, uma segunda folha, similar ao órgão genital feminino, é identificada como a planta que simboliza o amor entre um mítico casal da tribo Macuxi, e tê-la em casa, para várias comunidades, asseguraria relações afetivas duradouras.
É dessa matéria o herbário ao qual venho me dedicando, calcado no que eu chamo de “flora mágica brasileira”, ou seja: vegetais e também fungos com pretensas ou efetivas propriedades alucinógenas, afrodisíacas ou energéticas. Folhas, flores, cascas, espinhos, raízes e frutos em tratamento naturalista protagonizam o conjunto. No projeto, como é característico da minha poética, alinhavo verdade e ficção, fatos e crenças, palavras e as situações sugeridas, bases científicas e outras tantas da tradição oral, criando imagens que atestam, subvertem e gracejam com esse mesmo cabedal. Nos aspectos formais, adoto as premissas da ilustração botânica: mantenho o fundo branco característico dos desenhos taxonômicos, bem como o traçado leve e airoso, rico em detalhes; busco, com isso, o discurso de verdade para as imagens que concebo, embaralhando a percepção do observador. Eventualmente, insiro mapeamentos geográficos, fotografias, peças tridimensionais modeladas a partir de gesso e papel, além de comentários escritos a lápis, assumindo o papel do botânico, mas pleno de ludicidade, malícia e devaneio.
Um exemplo está na sequência que desenvolvi para o “Barbatimão” (Stryphnodendron adstringens), cujo nome deriva do indígena Iba timo, ou “árvore que aperta”. Sua casca é rica em tanino, substância que tem uma poderosa ação adstringente e cicatrizante, sendo usada em banhos de assento por gerações de parturientes de zonas rurais do cerrado brasileiro. Há mulheres, todavia, que almejam outros benefícios, como “recuperar a virgindade”. O mito vem da contração imediata e espontânea provocada pelo extrato da casca, quando em contato com as mucosas – no caso, com a mucosa vaginal.
Transmutar situações também pauta a galhofa que eu proponho a partir de duas plantas: a “Maria-sem-vergonha” (Impatiens walleriana) e a Mimosa pudica, nome científico para a flor conhecida como “Sensitiva”, “Dormideira” ou “Não-me-toque”, cujas folhas se recolhem instantaneamente a qualquer estímulo, seja água, temperatura ou tato. Na “simpatia da conversão” que fantasiei, uma mulher lúbrica e voluptuosa, próxima do que o dito popular chamaria de “sem-vergonha”, ingere chá de “pudica”, assumindo postura oposta: sóbria e recatada. No entanto, o que aconteceria se ela sucumbisse à minha interpretação para a “Flor-do-beijo” (Psychotria elata)? É possível que sua libidinagem se multiplicasse ainda mais... Raríssima e exuberante, a “Flor-do- beijo” tem brácteas vermelhas e lustrosas, que lembram lábios carnudos e revestidos com batom, razão pela qual a planta é usada em mandingas para atrair a pessoa amada. Adensando esse atributo, eu inseri, entre a representação das folhas modificadas, o desenho de uma língua humana, que se oferece lascivamente, sugerindo um beijo profundo, íntimo, de forte conotação sensual.
Desde que iniciei o projeto, foram mais de 90 espécies analisadas e, de algum modo, subvertidas. A presente publicação registra esse conjunto, sem se preocupar em inventariá-lo de modo rigoroso. Na edição das imagens, optei por exibir o cerne de cada uma das obras, respeitando os limites gráficos da página e mantendo o padrão editorial adotado. Isso significa que, com raras exceções, reproduzo integralmente as obras. Tal aspecto fica mais evidente na parte 4 do livro, no que chamei de Herbário. Nesse segmento, decidi apresentar, de modo ampliado e isoladamente, as peças tridimensionais que integram alguns trabalhos, acentuando o estranhamento das mesmas.
Contar e sugerir histórias de um outro modo, incitar a curiosidade, suspender as certezas do espectador. É em torno desses interesses que eu desenvolvo a minha investigação e obra, sempre em diálogo com as múltiplas vozes que complexificam e enriquecem os temas e objetos aos quais me dedico. Ao articular ludicamente conhecimentos ancestrais, crenças populares, aportes científicos e uma representação que opera no liame entre fantasia e tradição naturalista, o herbário em processo reverencia não somente a admirável biodiversidade de nosso País, como o povo brasileiro, em seus comoventes diálogos com esse patrimônio natural.
etnografia cultural da flora mágica brasileira
Walmor Corrêa
Come to me, Hold me close, Cry at my feet, Pick me up and don’t let me go, Bring my love from far away, Make someone love me, Open the ways, Bring me the grace of love, Make someone run after me... These bottled promises, sold at the Ver-o-Peso Public Market, in Belém do Pará, promise to attract, conquer, and bind couples. There are in fact no problems without a solution amongst the various specialized stalls: from hair loss to chilblains, allergies to impotence, or even bad luck in business. Herbs have an answer for everything.
It was in Ver-o-Peso where I began, in 2018, the field research upon which the Cultural ethnography of the magical Brazilian flora project is based, and which I have produced since then, in parallel with other work. At the time, as a way of vividly interacting to my object, I interviewed and talked to several “erveiras,” women who maintain the centuries-old family traditions and sell plants in the market, instructing in their use in teas, ointments, perfumes, and baths. Fascinated by the myriad information, I not only acquired some specimens, but also sought out scientific support from Embrapa in Belém, confirming the wisdom of the streets: many of these herbs do have powerful medicinal properties, their origins found in the names by which they are commonly known.
Popular names are born, to a great extent, in the observation of and comparison with, what is known, or from association to legends in national folklore. Thus, several plants of the genus Sansevieria are related to safety and support, given their similarity with fighting artifacts, such as the “Sword of St. George” and the “Dagger of St. Barbara”, guaranteeing
protection against negative energies and the evil eye; how the flower of the banana tree, purple, pendulous, grandiose and cone-shaped, is called “heart of the banana tree”; or how “Tambatajá”, with it’s triangular leaf with an attached second leaf behind, similar in appearance to female genital organs, are identified as a plant symbolizing the love between a mythical couple in the Macuxi tribe. According to various communities, having this plant at home assures long-term relationships.
It is from this material I have dedicated my herbarium, based upon what I call the “magical Brazilian flora”, that is, plants and also fungi which have supposed or effective healing, aphrodisiac, hallucinogenic, or energetic powers. Leaves, flowers, bark, thorns, roots and fruits in naturalistic treatment stand out in the set. In this project, as is characteristic of my poetics, I align truth and fiction, facts and fables, words and evoked situations, scientific bases, and many others from the oral tradition, to create images which attest, subvert and play in this same corpus. In the formal aspects, I adopt the premises of botanical illustration: keeping backgrounds white, characteristic of taxonomical drawings, with light and graceful traces, rich in detail; in these I search for a discourse of truth in the fabrications I contrive, shuffling the observer’s perception. Eventually, I included geographic maps, photographs, three-dimensional pieces molded from cast and paper, besides comments written in pencil, assuming the role of the botanist, but full of playfulness, malice and reverie.
One example is the sequence of images I developed to present “Barbatimão” (Stryphnodendron astringens), its name derived from the indigenous Iba timo, or “tree that squeezes”. Its bark is rich in tannins, a substance with powerful astringent and healing properties, and one used in sitz-baths by generations of pregnant women in rural areas of the Brazilian cerrado. There are women, however, who seek other benefits, such as the “recovery of virginity”. This myth derives from the immediate and spontaneous contractions caused by the bark extract when it contacts mucous membranes, in this case the vaginal mucous membrane.
Conflating attributes is also a theme in the game I propose, based upon two plants: the “Maria-sem-vergonha” (Impatiens walleriana) and Mimosa pudica (sweet and shy lady), scientific names for the flowers known as “Sensitive”, “Dormideira” (the sleeping flower), or “Não-me-toque” (don’t touch me), whose leaves instantly respond to any stimulus, be it water, temperature, or touch. In the “reversal sympathy” I fantasize of a lustful and voluptuous woman, close to what would be called “shameless” in popular language, who ingests the “pudica” tea, and thus assumes an opposite nature: shy and retiring. However, what would happen if she succumbed to my interpretation of the “Flor- do-beijo” (the kissing Flower, Psychotria elata)? Is it possible her libidinousness would grow?... Very rare and exuberant, the “Flor-do-beijo” has red and lustrous bracts, resembling plump lips coated with lipstick; they are the reason the plant is used in spells to attract loved ones. Adding to this attribute, I included, amongst the representations of modified leaves, a drawing of a human tongue, lasciviously offering itself, suggesting a deep and intimate kiss, with a strong sensual connotation.
Since I started the project, more than 90 species have been analyzed and, in some way, subverted. The present publication registers this set, without aiming the creation of a rigorous inventory. When editing the images, I chose to show the core of each work, respecting the graphic limits of the page and maintaining the adopted editorial pattern. This means that, with rare exceptions, I reproduce the works in full. Such feature gets more evident in part 4 of the book, which I have named Herbarium. In this segment, I decided to present, in an expanded and isolated way, the three-dimensional pieces that integrate some works, accentuating their strangeness.
The idea is to suggest and tell stories in a different way, to incite curiosity, to suspend the viewer’s certainty. It is around these interests I develop my research and work, always in dialogue with multiple voices which enrich the topics I dedicate myself to. By playfully articulating ancestral knowledge, popular beliefs, and scientific contribution, and a representation that operates between the fantasy and a naturalist tradition, the herbarium in process reveres not only the admirable biodiversity of Brazil, but also its people, in their emotional dialogue with this natural heritage.